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acordei mais cedo do que o habitual.
a varanda tem galhos secos, folhas verdes caídas (partidas?) das plantas e uma flor da orquídea no chão, morta pelo vento.
tirei um café com a porta (janela?) da varanda aberta. o odor amargo espalhou-se pela cozinha, logo despedaçado pelo vento que entrava a jorros.
bebi-o na varanda, a ver os carros passarem em baixo e a dança das árvores em frente.
quando tinha onze anos tive hepatite a.
uma daquelas doenças que, segundo disse o médico, atacam muito as crianças (ou atacavam?).
a avó receitou, a par dos medicamentos do médico, um chá muito bom, muito conhecido, que fazia milagres. a mamã deu-me os medicamentos e o chá de marroio, que eu vertia num vazo de uma planta, quando ela não estava a olhar, de tão amargo que era.
certo é que a planta ficou viçosa, por isso quem sabe, talvez resultasse.
durante o período da doença fui obrigada a ficar de repouso, na cama, durante um mês.
eu tinha onze anos e entrado no ensino básico fazia muito pouquinho tempo. eram dias de novidade:
o apanhar do autocarro de manhã cedo, o conhecer novas caras, professores e todo um ensino diferente. estava a gostar, sobretudo da biblioteca onde os livros eram imensos, mais do que alguma vez eu tivera à disposição, pelo que aquele confinamento provocou-me uma tristeza imensa.
a par de outras banalidades e tragédias domésticas que não vale a pena dissecar.
um dia à tarde, cansada da reclusão, num quarto onde havia uma tv a preto e branco, a única lá de casa levada para o meu quarto pela mamã (a única maneira de mudar de um canal para o outro era rodando um botão no aparelho); a fátima lopes à tarde, na sic, com um programa onde entrevistava pessoas que contavam coisas que eu não percebia; todos os meus livros lidos e relidos até à exaustão; pedi uma boneca à mamã.
nunca fui criança de grande bonecada. tirando a vontade óbvia de cortar o cabelo todo às que me eram oferecidas e questionar-me os motivos que levavam a que não tivessem pipi, nunca achei muita graça.
naquele dia, porém, apeteceu-me.
na aldeia não havia sítio onde comprar bonecas.
a mamã percorreu todas as lojas: as mercearias onde costumava ir, a loja de lembranças que uma senhora vendia, no centro da aldeia, e até a loja de roupas.
não havia.
não desistindo porém, de concretizar o meu pedido, encontrou uma na loja das lembranças, demasiado cara, de porcelana, com uns cabelos encaracolados e um vestido de veludo com uma gola de renda. era, efectivamente, demasiado cara, num mercado onde a lei da oferta e da procura regia-se pelas necessidades mais básicas, onde não havia olx, chineses ou promoções do continente.
cara como um roubo, no dinheiro que poderia fazer falta.
a mamã, no entanto, comprou a boneca e ofereceu-ma nessa tarde, uma alegria imensa, escondendo o cansaço de percorrer os sítios na procura do brinquedo e o dinheiro a mais gasto.
não era um brinquedo.
servia para estar dentro de uma caixa, fechada, para ser apreciada:
tinha umas pestanas falsas demasiado longas, um cabelo encaracolado demasiado sedoso e um vestido com tanta renda e veludo que lhe dava um ar de opulência decadente.
eu estava doente, em reclusão, em confinamento.
lembrava-me da escola, dos meus colegas, da aventura do autocarro.
e ali estava, filha única, fechada num quarto, sem grande entretém.
e quando quisera uma boneca de plástico, a quem pudesse cortar os cabelos e fazer vestidos de panos de louça velhos... era-me oferecido uma boneca de admirar e não de brincar.
disse-o à mamã. não por estas palavras, porque não sabemos explicar o que sentimos desta forma aos onze anos, mas por aquelas que conseguia.
ela olhou-me.
se sentiu desilusão, tristeza, ingratidão da minha parte, não o demonstrou.
levantou-se, tirou a boneca da caixa, foi à cozinha buscar uma tesoura e dois panos de louça que dispôs em cima da minha cama. trouxe também uma pequena bacia com água e sabonete. e depois, para meu espanto despiu a boneca, mergulhou-a na bacia e cortou-lhe uma madeixa de cabelo.
e brincamos as duas, o resto da tarde, com a desgraçada da boneca pintada na cara com marcadores, o cabelo destruído, envolvida em trapos velhos com maças e bules de chá desenhados.
era uma boneca cara, ali estragada numa tarde para que eu sorrisse.
lembrei-me disso de manhã, na varanda, perante a dança das árvores e desatei a chorar.
a medicação deixa-me frágil, no bombardeamento das hormonas.
há um aperto constante na garganta que me consome e inúmeros episódios de outrora circulam-me no cérebro, numa espécie de castigo, em recordações boas e más, que eu julgara extintas.
fechei a porta (ou janela?), pousei a chávena de café e telefonei à mamã.
ainda tão cedo que ela julgou que algo acontecera.
falamos de banalidades, da chuva, do temporal e dos dias.
e eu só queria agradecer-lhe pela boneca.