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umas das maravilha do outono é o quantidade de coisas que saem do quintal da mamã.
desta vez, o carro vindo de lá até coimbra parecia um atrelado de feira.
sinto-me relativamente mal no transporte dessas coisas. é aquela ideia do chegar, carregar e vir embora, como se a mamã fosse minha empregada e precisasse de providenciar a minha alimentação. bem sei que as coisas não são assim e que ela sente verdadeira satisfação no dar, no sentir que contribui, na ideia de que o seu amor transborda em coisas físicas.
uma semana antes do almoço quinzenal ela telefona, em intervalos curtos, numa roda viva, com uma listinha de coisas na sua letra bem redonda:
e limões, queres? temos ali tantos a estragar-se.
e ovos? a tua avó tem tantos que metade deles foram para o lixo, tudo estragado. quatro galinhas a pôr todos os dias, bem vês.
e depois, à noite, ainda antes de ir para a cama, quando eu estou a pensar no que será o jantar:
e louro? pus a secar dois ramos de louro enormes. queres que separe umas folhas para levares? não andes a comprar. um euro por umas folhinhas, onde já se viu!
olha e batatas?se não as gastar tenho de as pôr para o lixo daqui a uns tempos. não queres dar ao senhorio? ou à empregada?
o rapaz encolhe os ombros nesta demanda de produtos da serra.
ontem perguntou, enquanto encanteirava uma abóbora gigante em cima de outra e dois cabos de cebolas, que podes dar um a alguém, mais dois meses e elas espigam, sabes que não dá para conservar muito tempo:
mas vocês querem alimentar meia cidade, ou quê?
pela mamã, sim, alimentava meia cidade, na ideia de que aqui se come mal, tudo se compra e paga a peso de ouro, desde raminhos de salsa cheios de químicos, a carne prestes a passar de validade e mais barata por isso. tem mesmo absoluto horror a que compre carne no supermercado.
que nojo, exagera muito no nojo, para parecer de fato enjoada, coelho? aquilo ainda é gato! e aqueles porcos cheios de doenças? não compres nada disso.
a culpa também é minha. uma vez caí no erro de lhe contar que tinha comprado um frango estragado e que só percebera em casa, dado o cheiro nauseabundo que tinha. foi uma única vez mas nunca mais tirou aquilo da cabeça.
queres levar frango? pergunta num dos telefonemas, a lista ao lado.
não mãe, tenho aqui ainda muito.
pois claro, responde, andas a comprar essa porcaria, como o outro que cheirava mal.
foi só uma vez mãe.
e não chegou?
não vale a pena. é tempo perdido.
e tomates? não queres tomates para fazer polpa?
M.J. traz cinco quilos de tomates, que ela congelou (e só não fez a polpa porque sabe que eu gosto de o fazer).
quanto mais enchemos o carro mais fica feliz.
uma animação imensa, na sensação completa de sentido.
há mesmo legumes que só começou a cultivar quando percebeu que eu gostava: batata doce, xuxus, brócolos, couve flor, abacate. comprou até duas pequenas plantas de mirtilos e maracujás. e uma romãzeira quando o rapaz disse, a um almoço, que gostava de romãs.
há um prazer imenso no dar.
e castanhas? perguntou, num outro dia, na semana que passou. tenho aqui muitas.
e abóboras? abóbora menina... ando a dá-las ao porco, não tenho sítio para isto tudo.
feijão verde? tenho aqui que nunca mais acaba.
e alfaces?
sim mãe, um bocadinho de cada coisa. um bocadinho sim? um bocadinho é meio quilo, não meia aldeia.
não vale de nada.
o bocadinho transforma-se em quilos de tudo, que depois me vejo e desvejo para acondicionar.
partilho com a vizinha de baixo, o senhorio e a empregada. o bocadinho transforma-se em abóboras gigantes e batatas doces cujo tamanho nunca tinha visto.
e chocolates? ele quer chocolate? pergunta quando estamos já a vir embora, na despedida, a lágrima no canto do olho, como se fossemos para a guerra ou para a china ou de armas e bagagens para dois anos e não duas semanas.
o quê? pergunto eu a tentar aligeirar o ambiente, também cultivas milka no quintal?
e o rapaz, já com o chocolate na mão e a aletria no buxo, que ela faz de propósito para ele, na sabedoria que é o seu doce favorito:
está calada, não a desafies! qualquer dia chegas a casa e tens uma fábrica de produção de milka de caramelo e avelãs. e olha que esses não partilhas com meia cidade que eu não deixo.