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durante anos escrevi num diário. um diário vermelho, de capa fofinha, grosso, oferecido no natal por uma tia ausente. tinha onze anos e escrevia nele a morte do gato, os primeiros arrufos com amigos, algumas trevas que já me perseguiam. escrevia da mudança do corpo, da adolescência e dos dramas de quem tinha quatro invés de cinco. dos óculos que surgiram aos catorze anos e da banha a mais.
o diário era a a minha vida.
na faculdade percebi que tudo o que sonhara para um tempo de estudo, lido em carlos da maia, com a ponte ao luar, os estudantes em gritos de estudo... era falso. os meus colegas não tinham nada de eça, as capas negras escondiam vomitados e droga e as meninas, que eu julgara pertencerem à elite, vestidas de saia e sapatos quadrados, que me obrigaram a chamá-las de doutoras, roubavam revistas cor de rosa na papelaria onde eu trabalhava.
não consigo descrever a desilusão de quem colocara coimbra no cimo das monumentais, como o esplendor dos sonhos, e se apercebe que os problemas vinham afinal da serra para à cidade, acoplados à vida que era vivida, e as pessoas não eram diferentes por viverem num sitio com comodidades ao invés de árvores, o sino da igreja ou o rio ao fundo.
foi nesse tempo que criei um blog com passagens de um diário em papel onde escrevia. depois nunca mais o deixei. fui mudando de sítios, de registo, de temas. comecei com dores depressivas, escrevi sobre televisão e mais tarde, já depois da faculdade terminar, embrenhei-me na construção de uma personagem que escarrapachava sem medos - na certeza que incógnita na internet ninguém lhe dedicaria um carapau de atenção - toda uma vida, toda uma insegurança.
nesses tempos escrevia com muitos recamboleques (ainda que as aventuras destrambelhadas já existissem) e não dizia palavrões. tinha ainda (deus, foi quê? à seis anos?) todo um provincianismo da serra a correr-me nas veias (se imaginassem o quanto uma pessoa pode crescer, construir, seguir em seis anos benziam-se) aliado a convicções políticas fechadas, vindas do tempo em que avó me dizia, olhando de soslaio por cima do ombro, que não se falava mal do governo pois que havia sempre alguém para ouvir e contar. tinha ainda ideias certas e teimosas do que seria a normalidade das coisas, do que devia ser a vida como um todo. eu era, sejamos francos, uma puta de uma seca provinciana no que diz respeito a aborto, homossexuais, adopções e tantos outros temas estruturantes.
as minhas opiniões, confesso sem qualquer pudor, eram uma merda.
um dia encontrei um blog pelo qual me apaixonei de um travo só. era escrito por um homem, extremamente inteligente, que dizia palavrões como quem escreve virgulas, que desnudava a minha alma em palavras, que colocava ali, sem eu perceber bem como, aquilo que eu sentia e que nunca conseguira transmitir numa linguagem formada por letras e frases. encontrei um blog de alguém que me fez conhecer músicas que me embalavam as dores e me faziam sentir para além de mim. encontrei um blog de alguém que eu percebia ser de uma extraordinariedade que não se vê em blogs. de uma inteligência incomum. de um saber acima do que me rodeava. um blog de alguém que é homossexual. e desejei ardentemente ser amiga do alguém desse blog. como que se a minha pequenez, a minha mente provinciana pudesse chegar perto desse alguém e tomarmos café, aí, os dois, sentados numa esplanada a trocar impressões.
deus! que impressões podia trocar eu? que era uma idiota serrana a achar os gays diferentes? a assumir que era uma opção? a pensar que uma criança precisava de pai e mãe? a vergonha, meus senhores, a vergonha que senti nesse dia, quando me imaginei a tomar café com alguém que nunca vira mas que admirava de uma forma extraordinária, fez-me corar. fez-me repensar tudo aquilo em que assentei a minha personalidade, as minhas crenças, a minha educação. e, acreditem, fez-me mudar, ser diferente, ser - acredito - melhor.
nunca tomei café com esse alguém. nunca o vi. perdi-lhe o rasto, voltei a encontrar noutro blog. descobri que era amigo de outra pessoa extraordinária que comecei a amar também, voltei a perder. parece algo impensável, pequeno, sem sentido, dramático e idiota. parece algo que escapa às pessoas normais. às outras. não quero saber. aconteceu comigo, fez-me mudar, ser diferente, ser melhor. e foi por um blog. ou por dois, vá. ou três, se contarmos com o meu, graças ao qual conheci outros. ou quatro ainda, se pensarmos que foi nesta plataforma que isso aconteceu.
foi por blogs. ou melhor, por pessoas que escrevem em blogs.
o blog é uma parte importante da minha vida. tão importante como o que acabaram de ler.
e fez dois anos! está ou não de parabéns?